A poesia de Ferreira Gullar.
O enveredamento pelo mundo da poesia é
algo natural no ser humano, sendo que em alguns, após o primeiro contato, há um
alheamento das manifestações poéticas. Isso ocorrerá principalmente pela não
identificação do sujeito com a mensagem contida na poesia.
Essa identificação se dá quando a
poesia “fala” ao sujeito desde os primeiros instantes do contato e vários
fatores irão concorrer para essa empatia entre ambos – o sujeito e a poesia –
tais como a mensagem contida, o momento vivido e, mais distante, o autor que
irá movimentar através do seu texto as emoções, propósito final da arte
poética.
Autores – e autores bons – não hão que
faltar em um país tão rico culturalmente como o Brasil. Citar nomes se tornaria
uma tarefa extenuante dado a quantidade e variedade de poetas tupiniquins. Mas
como todo mortal tem suas preferências, um poeta que tem se destacado em minhas
leituras no gênero é Ferreira Gullar. Sério em alguns momentos e irreverentes
em outros e engajado em outros ainda, este se tornou o meu preferido, sem
desmerecimento de tantos outros bons que temos em nosso cenário.
A seguir, destaque para
alguns textos deste que é nosso vizinho – maranhense – e que tem muito a contar
e nos emocionar e fazer refletir com suas criativas poéticas.
O
açúcar
O branco açúcar que adoça meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por
milagre.
Vejo-o puro e afável ao paladar
Como beijo de moça, agua
Na pele, flor que dissolve na boca.
Mas este açúcar não foi feito por mim.
Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e tampouco o
fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nasceu por acaso
No regaço do vale.
[. . .]
Em usinas escuras
Homens de vida amarga e dura
Produziram este açúcar branco e puro
Que adoça o meu café esta manhã em
Ipanema.
X .X.X.X
Traduzir-se
Uma parte de mim é todo mundo
Outra parte é ninguém
Fundo sem fundo
Uma parte de mim é multidão
Outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera
Outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta
Outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte é linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte
- que é uma questão de vida ou morte –
Será arte?
z/z/z/z/z/z
Agosto
1964
Entre lojas de flores e de sapatos,
bares
Mercados, butiques,
Viajo.
Num ônibus Estrada de Ferro – Leblom.
Volto do trabalho, à noite em meio,
Fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
Relógio de lilases, concretismo,
Neoconcretismo, ficções da juventude,
adeus,
Que a vida
Eu compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso que
sufoca,
A poesia agora responde a inquérito
policial-militar.
Digo adeus à ilusão
Mas não ao mundo. Mas não à vida,
Meu reduto e meu reino.
Do salario injusto
Da punição injusta
Da humilhação, da tortura, do terror,
Retiramos algo e com ele construímos
um artefato,
Um poema,
Uma bandeira.
(Os cem melhores
poemas brasileiros do século. In: MARICONI, Ítalo (org.).
Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001).
b\b\b\b\b\b\b\b\b\
No
campo da poesia social – aquela poesia comprometida com os problemas sociais –
Ferreira Gullar também se destaca, vez que ainda hoje faz poesia engajada. A
que segue é um exemplo:
Homem comum
Sou um homem comum
De carne e de memoria
De osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de
taxi, de avião
E a vida sopra dentro de
mim
Pânica
Feito a chama de um
maçarico
E pode
Subitamente
Cessar.
[ . . . ]
Sou um homem comum
Brasileiro, maior,
casado, reservista,
E não vejo na vida,
amigo
Nenhum sentido, senão
Lutarmos juntos por um
mundo melhor.
Poeta fui de rápido
destino
Mas a poesia é rara e
não comove
Nem move o pau de arara.
Quero, por isso, falar
com você
De homem para homem,
apoiar-me em você
Oferecer-lhe o meu braço
Que o tempo é pouco
E o latifúndio está aí,
matando.
[ . . . ]
Homem comum, igual
A você
Cruzo a Avenida sob a
pressão do imperialismo
A sombra do latifúndio
Mancha a paisagem
Turva as aguas do mar
E a infância nos volta
À boca amarga,
Suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões
de homens
Comuns
E podemos formar uma
muralha
Com nossos corpos de
sonho e margaridas.
(
GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1950 – 1999). Rio de Janeiro:
José
Olympio, 2000).
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O que faz você feliz?
Cotrim
(2010) afirma que “segundo alguns estudiosos, três ideais ou valores foram
ganhando importância ao longo da história nas sociedades ocidentais e são,
hoje, considerados elementos fundamentais da felicidade individual e coletiva:
amor ao próximo; liberdade e bem comum (p. 26/7)”.
O
pensador inglês Jeremy Bentham (1748-1832) enviou a seguinte mensagem para uma
jovem na data de seu aniversário:
Crie toda a felicidade que possas;
suprima toda a infelicidade que consigas. Cada dia te dará oportunidade de
agregar algo ao bem-estar dos demais ou de mitigar um pouco suas dores. E cada
grão de felicidade que semeies no peito alheio germinará em teu próprio peito,
ao passo que cada dor que arranques dos pensamentos e sentimentos de teus
semelhantes será substituída pela paz e alegria mais belas do santuário de tua
alma.
(In; COTRIM, 2010, p.
30).
A
pergunta feita no titulo deste texto é relevante visto que há uma busca
incessante pela felicidade, sendo esta atrelada a vários aspectos do cotidiano
de todos, do mais simples ao mais abastado.
Em
2007 uma campanha publicitária do grupo Pão de Açúcar (publicada em Veja/ março
de 2007) e que trazia o título O que faz
você feliz? Assim se compunha:
A lua, a praia, o mar
A rua, a saia, amar. . .
Um doce, uma dança, um beijo,
Ou é a goiabada com queijo?
Afinal, o que faz você feliz?
Chocolate, paixão, dormir cedo,
acordar tarde,
Arroz com feijão, matar a saudade. . .
O aumento, a casa, o carro que você
sempre quis
Ou são os sonhos que te fazem feliz?
Um filme, um dia, uma semana
Um bem, um biquíni, uma grama. . .
Dormir na rede, matar a sede, ler. . .
Ou viver um romance?
O que faz você feliz?
Um lápis, uma letra, uma conversa boa
Um cafuné, café com leite, rir à toa
Um pássaro, ser dono do seu nariz. . .
Ou será um choro que te faz feliz?
A causa, a pausa, o sorvete,
Sentir o vento, esquecer o tempo,
O sal, o sol, um som,
O ar, a pessoa, o lugar?
Agora me diz,
O que faz você feliz?
X=x=x=x=x=x=x=x
Florbela
Espanca é uma das grandes representantes do modernismo português, sendo seus
poemas revestidos de grande intensidade quando falam de amor. Veja o exemplo a
seguir:
Os meus
versos
Rasga esses versos que eu te fiz,
amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao
esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o
vento,
Que a tempestade os leve aonde for.
Rasga-os na mente, se os souberes de
cor,
Que volte ao nada o nada de um
momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior! . . .
Tanto verso já disse o que sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo mundo as sente.
. .
Rasga os meus versos. . . pobre
endoidecida!
Como um grande amor cá nesta vida
Não fosse o amor de toda a gente! . .
.
(ESPANCA, Florbela. A
mensageira das violetas – antologia, 1997).