segunda-feira, 9 de maio de 2016

Os aforismos da crase

Certa feita, andando pelo pistão sul, em Taguatinga (DF) recolhi um encarte no canteiro em frente à Católica – uma das universidades ali existentes – graças à minha mania de ler “até encartes encontrados em canteiros”, deparei-me com o seguinte título: As vinte e duas maneiras corretas de se usar a crase. Na ocasião assustei-me, pois, a regra que conhecia era apenas a do seu uso ante as falas femininas.
O episódio me retorna à mente (percebam o uso do elemento gramatical em discussão) ao folhear “O melhor da Crônica Brasileira” e encontrar um texto de autoria do Ferreira Gullar – Os aforismos da Crase, o qual transcrevo a seguir:
“A crase não foi feita para humilhar ninguém” – esse aforismo que escrevi em 1955 ganhou popularidade e terminou sendo atribuído a vários escritores, menos a mim: a Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Otto Lara Resende e até a Machado de Assis. E de pouco adiantou a probidade desses escritores (os vivos, naturalmente), apontando-me como o verdadeiro autor do aforismo que àquela altura já passava a ser atribuído a autores estrangeiros...
Nesse particular, aliás, eu não dou sorte. Num encontro aqui no Rio com García Márquez, na casa de Rubem Braga, contaram-lhe que quando me perguntam se sou Ferreira Gullar, tenho a mania de responder: “Às vezes.” E faço por uma razão simples: tenho dois nomes, o outro, de batismo, é José Ribamar Ferreira. E também porque nem sempre sou capaz de escrever os poemas que o Gullar escreve...ainda que maus. Pois bem, não é que o García Márquez chegou em Portugal e, numa entrevista, atribuiu essa minha frase a Jorge Luis Borges? É claro que tais confusões só me lisonjeiam.
Mas a verdade é que certo dia me vi induzido a escrever uma série de aforismos sobre a crase, esse grave problema ortográfico e existencial que boa parte dos escritores, jornalistas e escrevinhadores em geral não conseguem resolver.
A crase tornou-se assim um pesadelo nacional. Hoje menos, porque já ninguém sabe o que é escrever certo ou errado. Mas, naqueles idos de 1955, as pessoas tremiam diante de certos “aa”. Talvez por isso o meu aforismo teve tão boa acolhida e rapidamente espalhou-se pelo país.
A mania de forjar aforismos eu a adquiri dos surrealistas, que criaram obras-primas como: “Bate em tua mãe enquanto ela é jovem.” Em 1955, no suplemento literário do Diário de Notícias, publiquei os meus “Aforismos sobre a crase”, antecipados de uma introdução que não vou transcrever aqui porque não tenho comigo o recorte, extraviado em alguma das tantas pastas que guardo no armário do escritório. Os aforismos, tentarei relembrá-los e reconstituí-los. Vamos a eles.
A crase não foi feita para humilhar ninguém.
Maria, mãe do Divino Cordeiro, craseava mal, e o Divino Cordeiro, mesmo, não era o que se pode chamar um bamba da crase.
Zaratustra, que tudo aprendeu com os animais do bosque, veio aprender crase numa universidade da Basiléia.
Quem tem  frase de vidro não atira crase na frase do vizinho.
Frase torcida, crase escondida.
Antes um abcesso no dente que uma crase na consciência.
Uns craseiam, outros ganham fama.
Os campeões da crase quando erram ditam leis.
Os ditadores não sabem que em frases como a bala ou à bala, é indiferente crasear ou não.
Oh!, Univac, que craseais sem pecado, craseai por nós, que recorremos a vós!

Nota: Univac era o computador mais avançado da época. Anos depois, abro uma revista e lá está um anúncio de página inteira: “A crase não foi feita para humilhar ninguém – computadores IBM.” Não me pediram permissão para usar o aforismo, claro, porque ninguém sabia de quem era. E eu estava clandestino, foragido da ditadura, sem poder botar a cabeça de fora. Não me atrevi a cobrar os meus direitos autorais. Mas a IBM bem podia, agora que estamos em plena democracia, pagar o que me deve...

O gosto pelo Ferreira Gullar, conhecido também, a partir de agora – graças aos seus “aforismos craseáticos” – como José de Ribamar Ferreira, desde que conheci seu poema Cantada, dar-se por reconhecer a sua versatilidade literária, além é claro pelo fato de ser nordestino e de, em Cantada, confirmar a beleza de Úrsula Andrews, objeto de desejo de 100 em cada 100 marmanjos que ousaram conhecê-la, fosse por foto ou em tela panorâmica o que, por si só, já era privilégio à época.
Este Ferreira Gullar “experimentou de tudo: da poesia concreta ao cordel (...) também autor de prosa, ensaio, crítica, teatro, além de ter traduzido vários livros (Ferreira Gullar.....[et. al.] 2009, p.141)”
– É  possível do Nordeste sair coisas boas. Recentemente recolhi em um local para crianças um livro intitulado Bichos do Lixo (2013) que, para minha surpresa, é do Ferreira Gullar m questão. Nele destaquei “Cães Ladrando à Lua – Melhor ladrarem à lua que à janela do meu quarto (p.8)”; “Demônio Asteca – cada povo tem o diabo que merece (p.10)”; “Pássaro no ninho – sei que as coisas não estão claras. Quanto ao pássaro, acho que sim, é um pássaro. Mas se não está no ninho, onde está? In dubio pro reo. (p.28)”; “Dr. Urubu – Doutor Urubu, a coisa tá preta (p.51)”.
Poderia ter enumerado “outros aforismos, esses bastam, no entanto, para dimensionar este que é, também, remanescente dos “perseguidos da Ditadura Militar”.
Nascido em São Luis do Maranhão em 1930; batizado como José de Ribamar Ferreira; publicou, aos 19 anos, Um pouco acima do Chão – livro de poesias. Nos anos 1970 escreveu Poema Sujo; Os livros A luta corporal (1954); Dentro da noite veloz (1975); Na vertigem do dia (1980); Barulhos (1987) e Muitas vezes (1999).
Os poemas que seguem – de José de Ribamar Ferreira, apenas confirmam porque vale a pena “conhecer e gostar do Ferreira Gullar”.

Lições de Arquitetura
(para Oscar Niemayer)


No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou para sempre
Uma ave uma flor
(ele não faz de pedra nossas casas:
Faz de flor)

No coração de Argel sofrida
Fiz aterrissar uma tarde
Uma nave estelar e linda
Como ainda há de ser a vida
(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
Que o sonho é popular)

Nos ensina a sonhar
Mesmo se lidamos
Com matéria dura;
O ferro o cimento a fome
Da humana arquitetura
Nos ensina a viver
No que ele transfigura:
No açúcar da pedra
No sonho do ovo
Na argila da aurora
Na pluma da neve
Na alvura do novo

Oscar nos ensina
Que a beleza é leve.

Gullar, Ferreira. Toda poesia (1950–1987)
                                                                                         Rio de Janeiro: José Olympio, 1991
Pag. 280/281


Meu povo, meu poema

Meu povo e meu poema crescem juntos
Como cresce no futuro
A árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
Como no canavial
Nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
Como o sol
Na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
Se reflete
Como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
Menos como quem canta
Do que planta.

                                                                                       Gullar Ferreira. Toda poesia (...)

Poema Brasileiro

No Piauí de cada 100 crianças
 que nascem
78 morrem antes de completar
8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar
8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

(GULLAR, Ferreira. Os melhores poemas de Ferreira Gullar. 2 ed. São Paulo. 1985)

  
Mar azul
Mar azul  marco azul
Mar azul  marco azul  barco azul
Mar azul  marco azul  barco azul  arco azul
Mar azul  marco azul  barco azul
Arco azul  ar azul

Ferreira Gullar. In. – Patrocínio, Mauro Ferreira. 2011 p. 120

quarta-feira, 4 de maio de 2016

(Quase) nas mãos dos meganhas.




É possível que o gostar das coisas tenha motivações diversas e necessárias. Ou, quem sabe, circunstanciais. Sendo assim, estas – as motivações – seriam intangíveis e se manifestariam sorrateiras, sem dores nem cores. Não avisariam quando iriam acontecer.
Na área do conhecimento alguns temas me são mais cativantes que outros, embora todos façam parte das minhas necessidades enquanto operador de fatos históricos.
A Idade Média me fascina; bem como o Renascimento, a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, a Segunda Guerra Mundial, etc. Dos temas nacionais, dedico particular atenção ao período entre os anos de 1964 a 1985, ou seja, o Regime Militar vigorante entre esses anos. Os generais de Castelo a Figueiredo; a Operação Bandeirante; o caso do Riocentro, o Congresso da UNE em Ibiúna, o vale do Ribeira, a serra do Caparaó, a guerrilha do Bico do Papagaio. Tenho, sempre que posso, lido esses temas. E gosto de todos eles. O por quê, não sei. Ou, talvez saiba...
Quando começou o ano de 1979 eu trabalhava, há quase um ano, na Padaria do Supermercado Gigante, loja 9, situada à rua Cândido Portinari, 41, na então cidade de Embu, hoje Embu das Artes, SP. Foi meu primeiro trabalho na região que destilava promessas e recebia a todos que por ali chegavam.
Época boa para trabalhar e ganhar dinheiro. Principalmente àqueles que se profissionalizavam as oportunidades surgiam com mais facilidade e constância. Eu me iniciava em padaria e fui acolhido no município e num supermercado da rede Merimex. Eu gostava da minha rotina.


Essa rotina se materializava em uma jornada de trabalho que começava às 20:00h indo até às 6:00 da manhã, diariamente, com folga às terças-feiras. O percurso, algo em torno de 6,5 quilômetros era feito a pé, ida à noite e volta no dia seguinte. Normalmente, por volta de 6:30h, após passar o serviço para a turma do dia e tomar banho, eu saía do supermercado no sentido da esquerda, dobrava a primeira esquina também à esquerda, na seguinte, dobrava à direita e fazia um percurso de aproximadamente 1700 metros na av. Elias Yazbec até alcançar a margem direita da BR 116 – Régis Bittencourt, no sentido Paraná,  seguindo então para iniciar a subida do morro, um percurso de aproximadamente 4,5 km, para o jardim Santo Antônio, onde morava.
Na Elias Yazbec, na altura onde hoje se localiza a casa de shows Caipirão, à época apenas uma fábrica de blocos de cimento para construção, no dia 14 de março de 1979, viveria uma experiência que me marcou muito e aguçou a minha curiosidade pela Ditadura Militar: fui barrado por um grupo avançado do DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social – objeto de escárnio social e de comentários diários em uma emissora paulista através de seu radialista mais famoso, Gil Gomes. O que mais ele apregoava é que evitássemos, o cidadão comum, cair nas “garras” do DOPS/ROTA e entrar em um dos seus camburões.
Eram quatro militares. Dois desceram da viatura que parara algo em torno de vinte metros a minha frente e o comandante do grupo apenas abriu a porta de uma Veraneio e descansou os pés na calçada. Os outros dois se postaram de maneira que eu haveria de passar entre eles e o sargento comandante. O outro se encontrou na traseira do veículo e se pôs a "ler" um jornal. Sem escolhas, segui para passar entre eles, como já destaquei; era o único meio. Ou me aventuraria pela pista de rolamento dos carros. Passei entre eles. Ou melhor, tentei.
Fui abordado pelo mais próximo de mim. Deu-me um “bom dia, senhor!”, e pediu que cumprimentasse o sargento. A partir de então iniciou-se uma série de perguntas que se repetia temporariamente: de onde o senhor vem; para onde vai; onde o senhor trabalha, com que trabalha, por que está na rua tão cedo....vez ou outra fazia uma pergunta fora desta ordem e, depois, retornavam: de onde o senhor vem; para onde vai, etc. (...) respondia às questões e pensava no Gil Gomes: “é perigoso ser pego pelo grupo do DOPS. Ou da ROTA - Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar. Evite!”
Foram educados. Porém, por trás dessa educação me humilharam e me diminuíram o máximo que puderam. Rasgaram o pacote de pão que levava para o café, jogaram os pães no chão e me pediram que os apanhassem; com um pacote de chocolate “Prestígio” que prometera para Soraia, uma sobrinha minha que naquele dia tinha 8 anos de idade, fizeram a mesma coisa. Com o meu rádio Motoradio que levava para o trabalho fizeram mais: Quebraram-no. Após esse “aperitivo” me pediram os documentos. No momento tinha quatro comigo, o necessário para a situação: Carteira Profissional, RG., Título de eleitor e Certificado de Alistamento Militar. Um a um o comandante recebia, olhava sem interesse e jogava no chão. Após o último, perguntou-me se podia juntá-los. Respondi que sim e o fiz. Aí começou o “baculejo”. Eram bons nisso: pernas abertas, braços levantados e os dois comandados se revezavam: mãos nas axilas, nas costelas, na bunda e no entre-pernas....
Não chorei e nem reclamei. Era o que eles queriam. Mas me senti um nada. Diminuído ao extremo. Me liberaram. Me disseram que “estava limpo e podia ir pra casa.” Me desejaram sorte para mim e para a família. Agradeci, disse bom dia e rumei para a margem da Régis que ficou muito, muito longe. Até atravessá-la, ouvia o barulho da viatura me seguindo, me deixando nervoso. Mas não olhei para trás. Era o que eles queriam.
Minha mente fervilhava. Ali, enquanto era agredido moralmente, decidi que voltaria para casa. Duas semanas e meia depois estava chegando em Floriano, Piauí. Terra querida.

É fascinante lembrar, hoje, que não entrei no camburão do DOPS. Graças a Deus!

A REFORMA E AS SOLAS

Reforma Protestante – nome dado ao movimento reformista que surgiu no cristianismo em 1517 por meio do monge agostiniano Martinho Lutero. A ...