terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Policiais na Elias Yasbek

Eu não consigo precisar quantas vezes ele passou a mão em minha bunda.

Era 1978, mês de março. O dia amanhecera tranquilo, sem promessa de chuva. Saí do trabalho por volta das 7:30h da manhã do dia 16 e percorria a avenida que hoje detém o nome de Elias Yasbek. Ia para casa, no Jardim Santo Antônio margem esquerda da rodovia BR 116 sentido Curitiba. O Jardim Santo Antônio – a sua entrada – localiza-se na altura do km 28 da referida rodovia e pertence ao município de Embu das Artes.
Fazia poucos meses que trabalhava no Supermercado Gigante, loja 9, empresa do Grupo Merimex. A loja 9 situava-se na rua Cândido Portinari, nº 139/161. Eu era ajudante de padeiro e trabalhava das 20:00h às 06:00h da manhã. Trabalho que gostava muito. Algo que eu sabia fazer; bons parceiros – Mestre José e José Maria, mineiros, boa gente – levava a vida tranquilo.
Era, para a época e para os meus 19 anos, um bom emprego: CR$ 3.500,00 (Três mil e quinhentos cruzeiros) no registro da CP; 60 (sessenta) horas-extras; 20% de insalubridade e 04 (quatro) folgas que, quando queria trabalhá-las, me pagavam. Mensalmente meu salário passava dos CR$ 5.000,00 (Cinco mil cruzeiros). Bom salário. Dava para viver bem, ajudar a irmã com quem morava, colocar dinheiro na poupança e ainda mandar um pouco para casa. Muito bom para quem tinha apenas curso ginasial e dominava bem a dactilografia – a digitação da época. Não tinha nada de errado para mim... Até ser abordado por 04 (quatro) componentes de uma viatura policial.
Eu já havia ouvido “o barulho” do veículo bem antes de ser alcançado. Na altura do acesso da rodovia eles pararam e três policiais desceram da Veraneio do DOI-CODI. O terceiro (o sargento que comandava o grupo) só abriu a porta, sentou na ponta do banco e colocou os pés na calçada onde eu havia de passar. Montaram uma situação onde eu passaria – entre e próximo a três deles. O quarto fingia ler um jornal mais a frente, talvez prevendo uma tentativa de fuga minha. Improvável!   – Quem ouvia diariamente Gil Gomes Liertz e seu sonoro “Bom dia” era sensato o suficiente para não fazer besteira.
Foi assim que fui abordado por uma patrulha policial da repressão. É bem verdade que o ano de 1978 já era “mais frio”, porém, ainda metia medo. Eu senti muito medo. Conhecendo a realidade do regime não tinha como não sentir. E eu conhecia. Meu pai era militante do PCB e por diversas vezes mudou-se e se escondeu. Na época eu não sabia o porquê. Sabia apenas que quando ele “viajava” eu e meus irmãos não o veríamos por 6 a 8 meses. Foi sempre assim e por isso tive medo.
O andamento da conversa deu-se assim: o sargento perguntava e eu respondia: De onde vem; o que tu faz na rua a essa hora; para onde tu vai, qual é o teu nome; o que tu faz na vida; o que tu leva nessa sacola...
– Eu venho do trabalho; tô indo para casa; meu nome é Eisenhower (aqui todos sorriam e algumas vezes me empurravam de um para o outro); sou padeiro; trabalho no Supermercado Gigante; levo pão para o café, o meu rádio (este passava a noite ligado no salão da padaria), um pacote de balas para uma sobrinha, a roupa do trabalho, etc.
- Tu mora onde; faz o que da vida; qual é o teu nome (quando eu respondia esta, novas risadas e empurrões). Tu faz o que no supermercado à noite; de onde tu é...
Isso se repetiu diversas vezes, acredito que buscavam contradição. No meu íntimo eu pedia a Deus para não me deixar contradizer e ser posto na viatura. O resto era possível suportar (Não era possível, era necessário. Impreterível).
Depois dessa repetição o sargento fez uma pergunta diferente e deu uma ordem. Pergunta:
– Tu tá com raiva de mim?
Prontamente respondi que não e então ele falou pra o que chamou de cabo:
– Dá uma geral no Piauí (por diversas vezes eu disse de onde era).
Foi quando começaram a passar a mão na minha bunda e puxar a mão na minha bunda e puxar os “bicos dos meus peitos”. Começava sempre por baixo dos braços, costelas, costas, coxas (dentro e fora) e a bunda. Aí o cara (não, cabo) repetia o processo. Depois de algum tempo ele priorizou os braços e a bunda.
Eu não chorei... No momento. Depois, chorei muito. Muito mesmo. Eu não fazia ideia do que era humilhação no meio de uma rua. Doeu muito e por isso chorei bastante. No dia seguinte pedi conta do trabalho. O sr. Clóvis (meu gerente, gente boa) me pediu explicação pois gostava muito do meu trabalho. Eu não contei depois de muito argumento me liberou na condição de eu trabalhar o aviso prévio, o que só aguentei por 15 (quinze) dias. Ele percebeu que eu não estava bem e solicitou do escritório que me dispensassem o restante. Foi atendido. Pagaram-me como se eu houvesse concluído minhas obrigações trabalhistas. Saí bem com eles.
Aí ele pediu meus documentos. Era costume naquela época o uso de uma carteira de plástico para a acomodação da Carteira Profissional. Com isso todos os meus documentos (RG.; Titulo Eleitoral e Reservista estavam juntos. Eu portava todos) estavam juntos. Ele – o sargento – ia tirando um a um da carteira, olhava rapidamente e jogava na calçada.  Depois pediu para olhar a sacola que eu levava.  Rasgou o saco dos pães (que se espalharam na calçada); rasgou o saco em que o rádio estava dentro e, por ultimo, rasgou o saco de balas. Tudo estava espalhado pelo chão. Foi quando ele perguntou se havia algum problema em eu juntar tudo. Respondi que não e juntei. Todos. Entre o sorriso do grupo. O que mais eu poderia fazer?
Para uns poucos amigos eu contei o que aconteceu comigo. Uma professora amiga minha já me ouviu sobre o 16 de março de 1978. Não é algo, agradável de ser narrado. É lembrança amarga.

A partir de então me interessei em ler e estudar o que aconteceu naquele período. Hoje gosto do tema, não das lembranças.

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